quinta-feira, 2 de março de 2017

sobre a última carta de clarice



eu sempre soube que caminhos não se cruzam por acaso. ando pelo mundo observando os sinais que vão me guiando, como singelos radares à semelhança de girassóis. amei clarice lispector desde a primeira linha e amo mais a cada nova visão de tudo o que vibra em torno dela. benjamin moser amou clarice também desde a primeira linha e de um amor ainda maior, que o fez aprender uma nova língua e descobrir um novo país que compreende mais e melhor do que muitos de nós. eu tenho tanto a agradecer a clarice... sou grata por tudo o que dela ficou em mim e ainda mais do quanto me comovem e me movem suas histórias, suas vírgulas e seus retratos e olhos que me olham sem viés. e também tenho tanto a agradecer ao benjamin, que trouxe clarice inteira, sem pudor. clarice é sua bandeira e ele a leva pelo mundo, para gregos e baianos, russos, turcos, ingleses e coreanos... clarice também mora dentro mim e nos livros da minha estante, tesouros que têm histórias várias e todas de imenso afeto.os primeiros, grifados em quase todas as linhas, revelando o desejo de apreender o máximo. a legião estrangeira, presente de um antigo namorado que traz uma dedicatória invisível a olho nu. a maçã no escuro, presente do chagas que me veio pelas mãos de celso. e os outros todos que comprei ou fui ganhando da adolescência até aqui. gosto de me esquecer de clarice para de novo ler como se fosse a primeira vez. tenho o cuidado de não ler tudo para guardar o espanto, o assombro, a magia, a felicidade clandestina, só minha, só que não, mas ainda assim minha.

benjamin veio a são luís há poucos anos para falar de clarice. ele me concedeu uma entrevista por email – como poderia um norte-americano escrever em língua portuguesa com tanta clareza? fui sua cicerone e mediei sua fala na feira do livro. de lá pra cá acompanho sua cruzada do descobrimento de clarice mundo afora. nos tornamos amigos intercontinentais e aqui e ali trocamos ideias, palavras de carinho e, generoso, trouxe informações para saciar minha curiosidade clariceana, além de indicações preciosas de literatura brasileira, que ele conhece bem e muito além de clarice.

e clarice, por sua vez, foi a ponte para que benjamin descobrisse o brasil. a prova dos nove está em ‘autoimperialismo’, livro que reúne três ensaios dele sobre o brasil, leitura obrigatória para refletir sobre este nosso ‘país do futuro’.

hoje, quinta-feira dois de março pós quarta-feira de cinzas, quando o ano começa de fato em nossa terra do nunca, encontro uma postagem do benjamin divulgando a chegada às livrarias da nova edição de ‘clarice,’ revista e ampliada que traz, entre outras peças inéditas, aquela que seria a última carta dela:





ato contínuo à leitura da carta, sob o impacto da descoberta, escrevi inbox ao benjamin:
andréa: ben querido, arrepio na alma e lágrimas nos olhos lendo a carta de clarice, a última, que você postou por aqui. pensar que ela viria a são luís e não veio. pensar que gullar escreveu um poema lindo no dia em que a enterraram. pensar que eu tinha 5 anos de idade e ainda não sabia quem era clarice. pensar que de algum modo ela sobrevoou a ilha no avião da fotografia aérea do gullar. pensar que gullar também já não está entre nós. pensar que você estava do outro lado e veio garimpar o espanto dessa mulher que vive em nós e na minha menina clarisse, a homenagem em busca da luz que clarice não teve tanto quanto eu quis. pensar que eu preciso dessa edição para me emocionar ainda mais com ela que tanto me dá em cada linha e em cada olhar de assombro sobre o mundo, a vida, o amor... obrigada, benjamim, obrigada!
benjamin: Aiiii Andréa, que simpatia você! Eu na verdade soube da existência daquela carta quando estava em São Luís, uma senhora me contou, e depois consegui comprá-la. Mas não tinha mostrado ainda, porque mostra Clarice tão perto do fim e sem a menor ideia do que tinha... e guardei para uma ocasião como esta!
andréa: pensar que ela esteve quase aqui e tão longe. perto de outra viagem... um assombro! eu lembro que você comentou dessa carta, mas o impacto de lê-la é mais uma vez chorar a morte, mais uma, da clarice

essa então é uma história dentro da história. a história de um quase. e pensar também que gullar chamava são luís de macondo, uma terra de magia e realidades fantásticas que os pés de clarice não chegaram a pisar. um chão que benjamin pisou de um pé só, machucado que veio de são paulo, depois de uma maratona de eventos de lançamento da biografia definitiva da esfinge russa que renasceu nas águas da língua portuguesa, esse monumento que habitamos e que se estende até a áfrica.


o que sei agora é que minha estante onde guardo clarice vai ganhar mais um livro e assim mais uma vez ela nascerá para mim, ainda que de novo eu tenha que chorar mais uma de suas mortes. mesmo tendo certeza de que ela vive além, dói em mim a sua falta e como se dezembro de 1977 fosse hoje, sinto o frio dos que chegaram perto do coração selvagem da vida.

http://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/A-ultima-carta-de-Clarice-Lispector

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

ligação secreta




quase todos os dias, de manhã cedinho, tenho um encontro com seu walter. nem sei se é assim que se escreve o nome dele, que descobri hoje, chamado pelos tantos conhecidos que o cumprimentam e só hoje reparei. somente hoje é que reparei com atenção cada detalhe daquela figura que já me parece um velho amigo. nunca nos falamos. apenas sei que vou encontrá-lo ali, no ponto onde aguardo o ônibus da empresa onde trabalho.
já havia reparado em sua figura e na bike lanches que sempre encontro estacionada. no cuidado que teve para cobrir os dois depósitos de isopor com plástico e da engenhoca que criou para que as tampas não voem: alças que se prendem com ganchos à estrutura da bicicleta. e essa não é a única engenhoca em sua bike. na frente vão os sucos – de bacuri, maracujá, cajá, cupuaçu... – acondicionados em garrafas pet de refrigerante de dois litros. na garupa ficam os salgados – pão-pizza, enrolado de salsicha, coxinha, pastel árabe.... e no ar se espalha o cheiro da cantina do colégio cada vez que ele abre para servir um novo freguês.
seu walter só pega o salgado com uma das mãos dentro de um saco plástico. um porta-guardanapos é fixo perto do guidão, de onde ele tira um para pegar cada salgado, colocar em um saquinho e entregar ao cliente. o suco é servido em copo plástico. ao lado do quadro da bicicleta um cesto de lixo de plástico é preso por um cordão de borracha.
no início da semana eu havia reparado no chapéu. acho que antes era um boné e não tinha chamado a minha atenção, a não ser pelo fato de usá-lo para proteger sua adiantada calvície. ele sempre usa uma camisa de botão de manga curta e uma bermuda cheia de bolsos. nos pés um tênis que imita marca famosa. sempre um sorriso no rosto e um bom papo. mas um papo na medida.
mantém sempre à mão um caderninho onde imagino que ele anota as vendas fiadas. sobre o caderno há sempre uma revista de caça-palavras, para a qual dedica com uma concentração incrível entre uma venda e outra. acho bonito vê-lo encostado, com um pé apoiado na bicicleta, marcando as palavras que vai encontrando naquele emaranhado de letras. essa era a minha ligação secreta com ele: do lado dele o caça-palavras e do meu o eterno interesse pelas palavras cruzadas. por mais que eu não tenha tempo sempre encontro um jeito de reencontrar pela casa ou dentro da bolsa um caderno de palavras cruzadas para me fazer companhia.
mas hoje, de um instante para o outro, me dei conta de que entre nós há uma outra e mais significativa ligação secreta. seu walter pertence ao meu universo particular. sua bike, seu chapéu, o plástico que envolve os depósitos dos lanches, o cestinho de lixo, a tinta da caneta que não sai de sua mão direita... tudo azul como o céu que nos protege e as mechas nos meus cabelos, desejo antigo que finalmente me permiti.
agora seu walter e seus azuis viajam comigo e eu sou mais feliz porque ele existe. e eu quase posso ver, ao final de seu expediente, ele seguindo com a camisa e o riso abertos, depósitos vazios, dinheirinho no bolso, assoviando uma canção qualquer. fim de tarde, na contramão do trânsito, seguindo leve, leve, pelas ruas, escapando por algum atalho, até chegar em casa para mostrar à mulher a féria do dia. talvez tenha netos e eles façam festa na hora em que chegar. talvez pare no mercadinho da esquina para comprar um litro de leite... ou roube uma flor para entregar à sua amada.
(ilustração: quadro de fernando mendonça, mago das bicicletas feitas de sonho)

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

História de passarim



Nunca vi um passarinho tão de perto. Pude olhar dentro de seu bico o vermelho rosado da língua e o fundo de sua garganta. Seus olhos sobre mim a me dizer algo que eu não compreendi de cara. E pedi, falando baixinho, ao que ele respondeu num canto curto. Falou com os olhos e com o corpo inteiro, chegando mais perto de mim. Suas penas de cor cinza foram apenas a primeira visão. Depois, com tamanha proximidade, percebi o azul da cauda brilhante debaixo da luz amarela de domingo.

Olhos nos olhos
O instante fotografado

Eu estava sentada na cadeira-rede pendurada na varanda de casa. Depois do café da manhã, fiquei lendo preguiçosamente uma revista de notícias. Um canto de pássaro me chamou a atenção, tão alto que parecia perto. E qual não foi a minha surpresa quando o vi ali, na base de madeira que sustenta a cadeira-rede. A primeira sensação foi a de me sentir escolhida. Achei que voaria dali a segundos, tinha vindo tão perto só para me dar bom dia! É que eu tenho essa mania de conversar com as plantas do jardim e com os passarinhos. Muitos já visitaram a varanda, ciscando migalhas esquecidas de pão. Ou em voo rasante que sempre penso ter sido um olá, como vai! que passarinho dá a quem ama tê-los em volta da casa.

Mas aquele passarinho no domingo me deu mais que um bom dia! Quis chamar Celso para dividir comigo aquela visita, mas o medo de que o som o assustasse me calou. Fiquei quieta, olhando olho no olho como nunca havia feito antes. E aquela troca de olhar tão intensa entrou como um vento varrendo a alma, remexendo folhas secas dentro de mim. Ele cantava lento agora. Olhava dentro dos meus olhos e se movia devagar, trêmulo. Será que estava ferido, doente? Aprendi há muito tempo que passarinho é assim mesmo, tem essa mania de tremer, o que demonstra sua fragilidade como se fosse uma forma de nos pedir para não machucá-lo. Depois imaginei, tão pequeno, que fosse um filhote ainda não treinado na arte de voar alto. Embora pensasse tudo isso enquanto não conseguia tirar os olhos dele, minha sensação maior ainda era a de que estava ali simplesmente para estar comigo.

Tentei conversar. Mesmo assobiando muito mal, tomei a iniciativa de começar um diálogo. Ele continuava a me olhar sereno e perguntador, exatamente como eu o olhava. Ao ouvir o assobio, Celso veio pensando que o chamava. Eu pedi baixinho para que viesse devagar porque tinha um passarinho ali comigo, muito perto. Ele veio e começou a fotografar o instante, como a prendê-lo numa gaiola de sonho. Meu passarinho... Sim, naquele momento já me sentia um pouco dona dele, que se aproximava ainda mais. Veio devagar pelos punhos. Imaginei que sentisse fome e Celso trouxe uma metade de banana. Estendi a mão devagar e ele veio mais perto. Claro que chorei! — impossível segurar a emoção de ter um passarinho vindo comer na minha mão. Uma mistura de poder e humildade correram pelas minhas veias num arrepio. O tempo parou para nós, como se fosse uma cena congelada pelo controle remoto de um vídeo-cassete numa antiga sessão da tarde. 

Comendo na minha mão
Depois de um tempo, voou raso, pouco acima do chão e chegou até as cadeiras do outro lado da varanda. Fui até lá e calculei que tinha sede. Peguei um pires pequeno com água e coloquei bem perto. Ele nem ligou. Deixei-o ali por compreender que havia estado comigo o quanto quis e o momento agora era de tentar voar sozinho. No caminho até o escritório, nos fundos da casa, ele me seguiu. Eu pensava nas crianças, especialmente em Clarisse, que ficaria impressionada com essa visita tão especial. 

Entrei e ele parou diante da porta, esperando minha volta. Celso sugeriu que eu abrisse o chuveiro. Fui até lá e ele novamente veio atrás de mim. Ficou olhando a água cair e eu juntei um pouco d’água nas mãos para molhá-lo com delicadeza. Resignado, ele se deixou ficar como quem aceita uma espécie de batismo. Àquela altura eu tinha toda a certeza de que vivia um instante sagrado e que passarinhos podem ser anjos, estrelas, enfim, passarinhos: esses seres que estão no mundo para espalhar beleza e nos chamar a atenção para o sagrado da vida.

Alimentado e refeito com a água, ensaiou mais um voo. Conseguiu chegar até a hera que cobre o muro. Deixei-o ali, em contato com a natureza, que melhor o ajudaria a encontrar seu caminho, e voltei ao escritório. Ele veio de novo até a porta. E de novo fui ao seu encontro. Estendi a mão e ele não ofereceu resistência. Peguei-o com medo, a vida tremendo nas minhas mãos. Celso sugeriu que eu deixasse ele bicar meu dedo para se sentir seguro. Deixei e ele, em vez de bicar, segurou meu dedo com o bico, como um bebê recém-nascido que se agarra com força ao dedo da mãe. Fiz carinho e perguntei baixinho o que ele queria me dizer. Nada me disse e eu não consegui mais segurar aquela vida trêmula. Pensei na confiança que me dera ao se entregar inteiro nas minhas mãos. Soltei-o e o vi pousar na mesa, onde ficou por um tempo.

Voltei ao escritório e ele não veio junto. Entendi que nosso encontro havia terminado. Agradeci em silêncio, como quem reza. Chorei de uma alegria estranha, sentindo a matéria da vida e ao mesmo tempo o que ela tem de etéreo. Entrei em outra história, de textos no computador e por algum tempo deixei de pensar nele. Ao sair, não estava mais por perto. Também não o procurei. Preferi respeitar profundamente o mistério daquilo.

Matéria viva e etérea da vida em cinza e azul

Pensei em Clarice Lispector e nas tantas histórias que escreveu sobre esses instantes de sentir a matéria viva da vida. Eu agora também estava ali, como G.H. diante de uma barata, como a menina diante de uma galinha de domingo. Era eu diante de um passarinho e ele me disse mais de mim do que eu nunca soube. Segui o dia e contei a história a algumas pessoas. Em nenhuma das vezes o relato sequer chegou perto do que foi o instante. Por isso estou agora escrevendo esta história que bem parece conto de pescador mas aconteceu de verdade. Além da minha alma transformada, ficaram as fotos que Celso registrou com delicadeza, sem perder o instante. E também ficou no ar o mistério das coisas mais simples.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Ontem à noite, com Manoel





Andou pela casa e não ouviu ninguém. Ligou e Ele contou que havia saído para levar as crianças à casa de sua mãe, onde dormiriam. Ao voltar, trouxe alguns velhos álbuns de família, dos quais pretendia digitar a maioria das imagens, para salvá-las do tempo e da umidade.

Passaram algum tempo vendo as fotografias. Ela adorava vê-lo ali, menino, posando para as lentes, fosse exibindo a roupa nova ou feliz da vida na praia. Demorou-se vendo aquela em que participava do desfile de 7 de setembro em roupa de gala do colégio Marista. O cabelo claro, a pele bronzeada, as orelhas... A bola na mão, o orgulho de vestir a camisa do Botafogo, as sapatilhas de lona, de que já gostava ali na infância. O pai reunido com os filhos, o riso, a festa, os barulhos da casa, a folia no carro, onde todos cabiam e aquele universo era tão pequeno e imenso ao mesmo tempo.

Ela ficou pensando naquele mundo de cores em preto e branco, pensando também em suas fotografias de infância e perguntou a Ele: - Onde será que estão as crianças que nós fomos? Ficaram ali pensando até que outro assunto entrasse na conversa. Ele sentiu sono. Para ela, que até há pouco dormira profundamente – a ponto de não ter percebido o movimento da casa na saída de todos nem o barulho do carro chegando à garagem na volta dele – o sono não viria facilmente.

Deixou-o no quarto e pegou o jornal, que leu inteiro. Ao terminar, buscou companhia na estante de livros da sala. Aquele livro do Manoel de Barros, com as folhas soltas dentro de uma caixa, parecia acenar da prateleira. Por ter capa bonita e ser um dos mais amados da casa, fica de frente e não encaixado como os demais. Ao abri-lo, demorou-se na dedicatória do autor, de que já não se lembrava: “Aos queridos Pedro e Clarisse beijos carinhosos do vô Manoel de Barros”. A caligrafia trêmula não parecia a letra de um homem velho, mas as primeiras tentativas de um menino.



A cada historinha relida daquelas memórias inventadas de infância, mais beleza se espalhava pela sala, pela casa. Numa delas, sentiu como se flores nascessem de seus poros. A pele virando terra de um quintal de sonho. “Tudo o que não invento é falso”, ele avisa na primeira página. Ela lê e segue cada frase como uma Alice deslizando buraco abaixo.

Sozinha com as histórias de Manoel, Ela chorava e compreendia. Estava ali a resposta à pergunta que fizera mais cedo e ficara no ar. O acaso de ter aberto aquele livro a fazia se sentir especial, escolhida para viver aquela vida, ter os filhos que tinha e o homem que segurava a sua mão naquela estrada de ir e voltar que o Manoel, em uma das histórias, chama de seu amor. Àquela altura de já não acreditar em acaso, Ela se sentia íntima das histórias como se tivessem sido escritas para ela. Para eles. Para responder às suas perguntas. Ela sempre pensara em Manoel de Barros como um vô menino, um homem lindo e generoso como um grande quintal de árvores carregadinhas. Mas aquilo era muito maior. Era prova de amor. Voltou ao quarto ainda chorando, baixinho.

Na cama, no quase dormir, achou que precisava dizer isso tudo ao Manoel. Uma carta, um email, mesmo sem saber se chegaria às suas mãos. Por um segundo, chegou a pensar que naquela noite – será? – o Manoel de Barros teria morrido. Jogou fora o pensamento e foi escrevendo a carta no pensamento para de manhã colocá-la no papel. Procuraria um jeito de fazê-la chegar. Haveria de chegar...

“Meu caro Manoel”. Não. Melhor de outra forma. Caro é muito formal e afinal de contas já não eram completamente estranhos um para o outro. Tentou novamente.



“Meu querido Manoel de Barros,

Não tenho certeza de que minhas palavras chegarão até você, mas escrevo mesmo assim porque preciso falar depois do tanto que você me disse há pouco, quando fui encontrá-lo nas suas memórias inventadas de menino. Eu gosto muito de ver fotografias antigas e hoje meu marido trouxe para casa alguns álbuns com imagens de família. Fiquei, como sempre fico, encantada de ver as fotos dele menino. Ia dando vontade de entrar nelas para ver as histórias acontecendo. Deu vontade de chamá-lo para brincar, sei lá!

Mais tarde, levando comigo aquelas imagens, perguntei a ele para onde será que iam as crianças que nós fomos. Aquela pergunta ficou ali no meio de nós até se dissolver no ar. E não é que você, Manoel, que estava exibido na estante como o quadro mais bonito, me chamou para contar histórias até o sono chegar? E não é que você, Manoel, me arrastou por vários buracos de vários quintais e me respondeu? E aqui, só de lembrar do que senti indo com você nessa viagem, Manoel, só de lembrar eu choro de novo?

Não, não se preocupe, meu querido Manoel de Barros. Eu não chorei e não estou chorando de tristeza, não. Também não é de saudade. Eu choro é de agradecer, só isso. De agradecer por encher de beleza que até dói de tão bonito que é. E eu que nem tava procurando resposta, só buscava alguma coisa para ler... Obrigada, Manoel, muito obrigada! Eu que já o amava desde a primeira vez que li a palavra ‘disilimina!’ em um livro seu, agora o amo ainda mais por disiliminar o pó do tempo e cavar achadouros na minha alma.

E agora, Manoel, enquanto escrevo me vejo correndo ali naquele pedaço de terra de fora da casa, cavando o pé da mangueira. Com sua licença, Manoel, sou a partir de hoje uma caçadora de achadouros de infância. Vou meio dementada com a enxada (que você me deu ontem à noite) às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.

Um grande abraço da menina Andréa.”

Foi só escrever a carta e Ela dormiu. Que nem passarinho. Que nem criança depois de brincar no quintal.

Ilha de São Luís do Maranhão, 24 de fevereiro de 2013









terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Melancias nasceram na rua!


Dia desses, na Rua das Magnólias, minha rua das Magnólias, a cratera da esquina de casa deu flor e depois frutos. Um pé de melancia nasceu no buraco e as frutas cresceram e foram levadas por anônimos passantes. Talvez os mesmos que teimam em jogar lixo tanto no buraco quanto na galeria de águas pluviais do qual ele – o buraco – surgiu.

Cidadã que sou, venho tentando o conserto desse buraco que há meses só cresce e vai ficando mais fundo. Dá medo, principalmente de, num dia de chuva, um carro cair ali e o motorista não conseguir retirar. Também tenho medo de que um pedestre distraído se machuque. E mais medo ainda de que as crianças, indo buscar uma bola que saltou para a rua, caia ali e... ai ai ai, nem quero pensar!

Das autoridades competentes tive apenas promessas. A última, de que o conserto viria junto com o plano de revitalização do bairro, a começar pela galeria que nasce mais acima, próximo de um prédio, e etc. e tal. Conversa pra boi dormir. Mas nem elas, as autoridades competentes, nem nós de casa, os mais interessados em ter o problema resolvido, e nem mais ninguém, imaginaria a cena inusitada que aquele buraco abusado nos ofereceu alguns dias depois da última promessa.

Enquanto isso, o pé de jambo que plantamos no jardim com todo o cuidado – rega, adubo orgânico, amor e planos de um dia ver Pedro & Clarisse encostados em seu tronco e debaixo de sua sombra lendo um livro – esse não vingou. Não passa de um galho seco e triste no meio da grama verde.

Ter melancias nascendo no meio do asfalto é mais do que inusitado. È algo entre o horror e a mais pura beleza. A imagem me fez lembrar de um poema do Drummond, A Flor e a Náusea, que fala de uma flor que nasceu na rua e o poeta diz: “As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase”.




Às melancias que nasceram do asfalto da minha Rua das Magnólias não faltaram ênfase e a boca aberta de cada um de nós, impressionados! Melancias nasceram na rua! Mais do que qualquer comentário, deixo o poema, que diz mais do que minhas palavras. E a imagem única da primeira melancia. Um dia após o registro, foi roubada e quem sabe comida por quem a levou. Imagino que fosse imprópria para consumo, mas quem há de dizer isso a quem tem fome e encontra um pé de melancia no meio do asfalto?

A FLOR E A NÁUSEA


Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjoo?

Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Uma flor nasceu na rua!

Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

E soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.