quinta-feira, 2 de março de 2017

sobre a última carta de clarice



eu sempre soube que caminhos não se cruzam por acaso. ando pelo mundo observando os sinais que vão me guiando, como singelos radares à semelhança de girassóis. amei clarice lispector desde a primeira linha e amo mais a cada nova visão de tudo o que vibra em torno dela. benjamin moser amou clarice também desde a primeira linha e de um amor ainda maior, que o fez aprender uma nova língua e descobrir um novo país que compreende mais e melhor do que muitos de nós. eu tenho tanto a agradecer a clarice... sou grata por tudo o que dela ficou em mim e ainda mais do quanto me comovem e me movem suas histórias, suas vírgulas e seus retratos e olhos que me olham sem viés. e também tenho tanto a agradecer ao benjamin, que trouxe clarice inteira, sem pudor. clarice é sua bandeira e ele a leva pelo mundo, para gregos e baianos, russos, turcos, ingleses e coreanos... clarice também mora dentro mim e nos livros da minha estante, tesouros que têm histórias várias e todas de imenso afeto.os primeiros, grifados em quase todas as linhas, revelando o desejo de apreender o máximo. a legião estrangeira, presente de um antigo namorado que traz uma dedicatória invisível a olho nu. a maçã no escuro, presente do chagas que me veio pelas mãos de celso. e os outros todos que comprei ou fui ganhando da adolescência até aqui. gosto de me esquecer de clarice para de novo ler como se fosse a primeira vez. tenho o cuidado de não ler tudo para guardar o espanto, o assombro, a magia, a felicidade clandestina, só minha, só que não, mas ainda assim minha.

benjamin veio a são luís há poucos anos para falar de clarice. ele me concedeu uma entrevista por email – como poderia um norte-americano escrever em língua portuguesa com tanta clareza? fui sua cicerone e mediei sua fala na feira do livro. de lá pra cá acompanho sua cruzada do descobrimento de clarice mundo afora. nos tornamos amigos intercontinentais e aqui e ali trocamos ideias, palavras de carinho e, generoso, trouxe informações para saciar minha curiosidade clariceana, além de indicações preciosas de literatura brasileira, que ele conhece bem e muito além de clarice.

e clarice, por sua vez, foi a ponte para que benjamin descobrisse o brasil. a prova dos nove está em ‘autoimperialismo’, livro que reúne três ensaios dele sobre o brasil, leitura obrigatória para refletir sobre este nosso ‘país do futuro’.

hoje, quinta-feira dois de março pós quarta-feira de cinzas, quando o ano começa de fato em nossa terra do nunca, encontro uma postagem do benjamin divulgando a chegada às livrarias da nova edição de ‘clarice,’ revista e ampliada que traz, entre outras peças inéditas, aquela que seria a última carta dela:





ato contínuo à leitura da carta, sob o impacto da descoberta, escrevi inbox ao benjamin:
andréa: ben querido, arrepio na alma e lágrimas nos olhos lendo a carta de clarice, a última, que você postou por aqui. pensar que ela viria a são luís e não veio. pensar que gullar escreveu um poema lindo no dia em que a enterraram. pensar que eu tinha 5 anos de idade e ainda não sabia quem era clarice. pensar que de algum modo ela sobrevoou a ilha no avião da fotografia aérea do gullar. pensar que gullar também já não está entre nós. pensar que você estava do outro lado e veio garimpar o espanto dessa mulher que vive em nós e na minha menina clarisse, a homenagem em busca da luz que clarice não teve tanto quanto eu quis. pensar que eu preciso dessa edição para me emocionar ainda mais com ela que tanto me dá em cada linha e em cada olhar de assombro sobre o mundo, a vida, o amor... obrigada, benjamim, obrigada!
benjamin: Aiiii Andréa, que simpatia você! Eu na verdade soube da existência daquela carta quando estava em São Luís, uma senhora me contou, e depois consegui comprá-la. Mas não tinha mostrado ainda, porque mostra Clarice tão perto do fim e sem a menor ideia do que tinha... e guardei para uma ocasião como esta!
andréa: pensar que ela esteve quase aqui e tão longe. perto de outra viagem... um assombro! eu lembro que você comentou dessa carta, mas o impacto de lê-la é mais uma vez chorar a morte, mais uma, da clarice

essa então é uma história dentro da história. a história de um quase. e pensar também que gullar chamava são luís de macondo, uma terra de magia e realidades fantásticas que os pés de clarice não chegaram a pisar. um chão que benjamin pisou de um pé só, machucado que veio de são paulo, depois de uma maratona de eventos de lançamento da biografia definitiva da esfinge russa que renasceu nas águas da língua portuguesa, esse monumento que habitamos e que se estende até a áfrica.


o que sei agora é que minha estante onde guardo clarice vai ganhar mais um livro e assim mais uma vez ela nascerá para mim, ainda que de novo eu tenha que chorar mais uma de suas mortes. mesmo tendo certeza de que ela vive além, dói em mim a sua falta e como se dezembro de 1977 fosse hoje, sinto o frio dos que chegaram perto do coração selvagem da vida.

http://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/A-ultima-carta-de-Clarice-Lispector

Nenhum comentário:

Postar um comentário