terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Melancias nasceram na rua!


Dia desses, na Rua das Magnólias, minha rua das Magnólias, a cratera da esquina de casa deu flor e depois frutos. Um pé de melancia nasceu no buraco e as frutas cresceram e foram levadas por anônimos passantes. Talvez os mesmos que teimam em jogar lixo tanto no buraco quanto na galeria de águas pluviais do qual ele – o buraco – surgiu.

Cidadã que sou, venho tentando o conserto desse buraco que há meses só cresce e vai ficando mais fundo. Dá medo, principalmente de, num dia de chuva, um carro cair ali e o motorista não conseguir retirar. Também tenho medo de que um pedestre distraído se machuque. E mais medo ainda de que as crianças, indo buscar uma bola que saltou para a rua, caia ali e... ai ai ai, nem quero pensar!

Das autoridades competentes tive apenas promessas. A última, de que o conserto viria junto com o plano de revitalização do bairro, a começar pela galeria que nasce mais acima, próximo de um prédio, e etc. e tal. Conversa pra boi dormir. Mas nem elas, as autoridades competentes, nem nós de casa, os mais interessados em ter o problema resolvido, e nem mais ninguém, imaginaria a cena inusitada que aquele buraco abusado nos ofereceu alguns dias depois da última promessa.

Enquanto isso, o pé de jambo que plantamos no jardim com todo o cuidado – rega, adubo orgânico, amor e planos de um dia ver Pedro & Clarisse encostados em seu tronco e debaixo de sua sombra lendo um livro – esse não vingou. Não passa de um galho seco e triste no meio da grama verde.

Ter melancias nascendo no meio do asfalto é mais do que inusitado. È algo entre o horror e a mais pura beleza. A imagem me fez lembrar de um poema do Drummond, A Flor e a Náusea, que fala de uma flor que nasceu na rua e o poeta diz: “As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase”.




Às melancias que nasceram do asfalto da minha Rua das Magnólias não faltaram ênfase e a boca aberta de cada um de nós, impressionados! Melancias nasceram na rua! Mais do que qualquer comentário, deixo o poema, que diz mais do que minhas palavras. E a imagem única da primeira melancia. Um dia após o registro, foi roubada e quem sabe comida por quem a levou. Imagino que fosse imprópria para consumo, mas quem há de dizer isso a quem tem fome e encontra um pé de melancia no meio do asfalto?

A FLOR E A NÁUSEA


Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjoo?

Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Uma flor nasceu na rua!

Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

E soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.