segunda-feira, 26 de agosto de 2013

História de passarim



Nunca vi um passarinho tão de perto. Pude olhar dentro de seu bico o vermelho rosado da língua e o fundo de sua garganta. Seus olhos sobre mim a me dizer algo que eu não compreendi de cara. E pedi, falando baixinho, ao que ele respondeu num canto curto. Falou com os olhos e com o corpo inteiro, chegando mais perto de mim. Suas penas de cor cinza foram apenas a primeira visão. Depois, com tamanha proximidade, percebi o azul da cauda brilhante debaixo da luz amarela de domingo.

Olhos nos olhos
O instante fotografado

Eu estava sentada na cadeira-rede pendurada na varanda de casa. Depois do café da manhã, fiquei lendo preguiçosamente uma revista de notícias. Um canto de pássaro me chamou a atenção, tão alto que parecia perto. E qual não foi a minha surpresa quando o vi ali, na base de madeira que sustenta a cadeira-rede. A primeira sensação foi a de me sentir escolhida. Achei que voaria dali a segundos, tinha vindo tão perto só para me dar bom dia! É que eu tenho essa mania de conversar com as plantas do jardim e com os passarinhos. Muitos já visitaram a varanda, ciscando migalhas esquecidas de pão. Ou em voo rasante que sempre penso ter sido um olá, como vai! que passarinho dá a quem ama tê-los em volta da casa.

Mas aquele passarinho no domingo me deu mais que um bom dia! Quis chamar Celso para dividir comigo aquela visita, mas o medo de que o som o assustasse me calou. Fiquei quieta, olhando olho no olho como nunca havia feito antes. E aquela troca de olhar tão intensa entrou como um vento varrendo a alma, remexendo folhas secas dentro de mim. Ele cantava lento agora. Olhava dentro dos meus olhos e se movia devagar, trêmulo. Será que estava ferido, doente? Aprendi há muito tempo que passarinho é assim mesmo, tem essa mania de tremer, o que demonstra sua fragilidade como se fosse uma forma de nos pedir para não machucá-lo. Depois imaginei, tão pequeno, que fosse um filhote ainda não treinado na arte de voar alto. Embora pensasse tudo isso enquanto não conseguia tirar os olhos dele, minha sensação maior ainda era a de que estava ali simplesmente para estar comigo.

Tentei conversar. Mesmo assobiando muito mal, tomei a iniciativa de começar um diálogo. Ele continuava a me olhar sereno e perguntador, exatamente como eu o olhava. Ao ouvir o assobio, Celso veio pensando que o chamava. Eu pedi baixinho para que viesse devagar porque tinha um passarinho ali comigo, muito perto. Ele veio e começou a fotografar o instante, como a prendê-lo numa gaiola de sonho. Meu passarinho... Sim, naquele momento já me sentia um pouco dona dele, que se aproximava ainda mais. Veio devagar pelos punhos. Imaginei que sentisse fome e Celso trouxe uma metade de banana. Estendi a mão devagar e ele veio mais perto. Claro que chorei! — impossível segurar a emoção de ter um passarinho vindo comer na minha mão. Uma mistura de poder e humildade correram pelas minhas veias num arrepio. O tempo parou para nós, como se fosse uma cena congelada pelo controle remoto de um vídeo-cassete numa antiga sessão da tarde. 

Comendo na minha mão
Depois de um tempo, voou raso, pouco acima do chão e chegou até as cadeiras do outro lado da varanda. Fui até lá e calculei que tinha sede. Peguei um pires pequeno com água e coloquei bem perto. Ele nem ligou. Deixei-o ali por compreender que havia estado comigo o quanto quis e o momento agora era de tentar voar sozinho. No caminho até o escritório, nos fundos da casa, ele me seguiu. Eu pensava nas crianças, especialmente em Clarisse, que ficaria impressionada com essa visita tão especial. 

Entrei e ele parou diante da porta, esperando minha volta. Celso sugeriu que eu abrisse o chuveiro. Fui até lá e ele novamente veio atrás de mim. Ficou olhando a água cair e eu juntei um pouco d’água nas mãos para molhá-lo com delicadeza. Resignado, ele se deixou ficar como quem aceita uma espécie de batismo. Àquela altura eu tinha toda a certeza de que vivia um instante sagrado e que passarinhos podem ser anjos, estrelas, enfim, passarinhos: esses seres que estão no mundo para espalhar beleza e nos chamar a atenção para o sagrado da vida.

Alimentado e refeito com a água, ensaiou mais um voo. Conseguiu chegar até a hera que cobre o muro. Deixei-o ali, em contato com a natureza, que melhor o ajudaria a encontrar seu caminho, e voltei ao escritório. Ele veio de novo até a porta. E de novo fui ao seu encontro. Estendi a mão e ele não ofereceu resistência. Peguei-o com medo, a vida tremendo nas minhas mãos. Celso sugeriu que eu deixasse ele bicar meu dedo para se sentir seguro. Deixei e ele, em vez de bicar, segurou meu dedo com o bico, como um bebê recém-nascido que se agarra com força ao dedo da mãe. Fiz carinho e perguntei baixinho o que ele queria me dizer. Nada me disse e eu não consegui mais segurar aquela vida trêmula. Pensei na confiança que me dera ao se entregar inteiro nas minhas mãos. Soltei-o e o vi pousar na mesa, onde ficou por um tempo.

Voltei ao escritório e ele não veio junto. Entendi que nosso encontro havia terminado. Agradeci em silêncio, como quem reza. Chorei de uma alegria estranha, sentindo a matéria da vida e ao mesmo tempo o que ela tem de etéreo. Entrei em outra história, de textos no computador e por algum tempo deixei de pensar nele. Ao sair, não estava mais por perto. Também não o procurei. Preferi respeitar profundamente o mistério daquilo.

Matéria viva e etérea da vida em cinza e azul

Pensei em Clarice Lispector e nas tantas histórias que escreveu sobre esses instantes de sentir a matéria viva da vida. Eu agora também estava ali, como G.H. diante de uma barata, como a menina diante de uma galinha de domingo. Era eu diante de um passarinho e ele me disse mais de mim do que eu nunca soube. Segui o dia e contei a história a algumas pessoas. Em nenhuma das vezes o relato sequer chegou perto do que foi o instante. Por isso estou agora escrevendo esta história que bem parece conto de pescador mas aconteceu de verdade. Além da minha alma transformada, ficaram as fotos que Celso registrou com delicadeza, sem perder o instante. E também ficou no ar o mistério das coisas mais simples.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Ontem à noite, com Manoel





Andou pela casa e não ouviu ninguém. Ligou e Ele contou que havia saído para levar as crianças à casa de sua mãe, onde dormiriam. Ao voltar, trouxe alguns velhos álbuns de família, dos quais pretendia digitar a maioria das imagens, para salvá-las do tempo e da umidade.

Passaram algum tempo vendo as fotografias. Ela adorava vê-lo ali, menino, posando para as lentes, fosse exibindo a roupa nova ou feliz da vida na praia. Demorou-se vendo aquela em que participava do desfile de 7 de setembro em roupa de gala do colégio Marista. O cabelo claro, a pele bronzeada, as orelhas... A bola na mão, o orgulho de vestir a camisa do Botafogo, as sapatilhas de lona, de que já gostava ali na infância. O pai reunido com os filhos, o riso, a festa, os barulhos da casa, a folia no carro, onde todos cabiam e aquele universo era tão pequeno e imenso ao mesmo tempo.

Ela ficou pensando naquele mundo de cores em preto e branco, pensando também em suas fotografias de infância e perguntou a Ele: - Onde será que estão as crianças que nós fomos? Ficaram ali pensando até que outro assunto entrasse na conversa. Ele sentiu sono. Para ela, que até há pouco dormira profundamente – a ponto de não ter percebido o movimento da casa na saída de todos nem o barulho do carro chegando à garagem na volta dele – o sono não viria facilmente.

Deixou-o no quarto e pegou o jornal, que leu inteiro. Ao terminar, buscou companhia na estante de livros da sala. Aquele livro do Manoel de Barros, com as folhas soltas dentro de uma caixa, parecia acenar da prateleira. Por ter capa bonita e ser um dos mais amados da casa, fica de frente e não encaixado como os demais. Ao abri-lo, demorou-se na dedicatória do autor, de que já não se lembrava: “Aos queridos Pedro e Clarisse beijos carinhosos do vô Manoel de Barros”. A caligrafia trêmula não parecia a letra de um homem velho, mas as primeiras tentativas de um menino.



A cada historinha relida daquelas memórias inventadas de infância, mais beleza se espalhava pela sala, pela casa. Numa delas, sentiu como se flores nascessem de seus poros. A pele virando terra de um quintal de sonho. “Tudo o que não invento é falso”, ele avisa na primeira página. Ela lê e segue cada frase como uma Alice deslizando buraco abaixo.

Sozinha com as histórias de Manoel, Ela chorava e compreendia. Estava ali a resposta à pergunta que fizera mais cedo e ficara no ar. O acaso de ter aberto aquele livro a fazia se sentir especial, escolhida para viver aquela vida, ter os filhos que tinha e o homem que segurava a sua mão naquela estrada de ir e voltar que o Manoel, em uma das histórias, chama de seu amor. Àquela altura de já não acreditar em acaso, Ela se sentia íntima das histórias como se tivessem sido escritas para ela. Para eles. Para responder às suas perguntas. Ela sempre pensara em Manoel de Barros como um vô menino, um homem lindo e generoso como um grande quintal de árvores carregadinhas. Mas aquilo era muito maior. Era prova de amor. Voltou ao quarto ainda chorando, baixinho.

Na cama, no quase dormir, achou que precisava dizer isso tudo ao Manoel. Uma carta, um email, mesmo sem saber se chegaria às suas mãos. Por um segundo, chegou a pensar que naquela noite – será? – o Manoel de Barros teria morrido. Jogou fora o pensamento e foi escrevendo a carta no pensamento para de manhã colocá-la no papel. Procuraria um jeito de fazê-la chegar. Haveria de chegar...

“Meu caro Manoel”. Não. Melhor de outra forma. Caro é muito formal e afinal de contas já não eram completamente estranhos um para o outro. Tentou novamente.



“Meu querido Manoel de Barros,

Não tenho certeza de que minhas palavras chegarão até você, mas escrevo mesmo assim porque preciso falar depois do tanto que você me disse há pouco, quando fui encontrá-lo nas suas memórias inventadas de menino. Eu gosto muito de ver fotografias antigas e hoje meu marido trouxe para casa alguns álbuns com imagens de família. Fiquei, como sempre fico, encantada de ver as fotos dele menino. Ia dando vontade de entrar nelas para ver as histórias acontecendo. Deu vontade de chamá-lo para brincar, sei lá!

Mais tarde, levando comigo aquelas imagens, perguntei a ele para onde será que iam as crianças que nós fomos. Aquela pergunta ficou ali no meio de nós até se dissolver no ar. E não é que você, Manoel, que estava exibido na estante como o quadro mais bonito, me chamou para contar histórias até o sono chegar? E não é que você, Manoel, me arrastou por vários buracos de vários quintais e me respondeu? E aqui, só de lembrar do que senti indo com você nessa viagem, Manoel, só de lembrar eu choro de novo?

Não, não se preocupe, meu querido Manoel de Barros. Eu não chorei e não estou chorando de tristeza, não. Também não é de saudade. Eu choro é de agradecer, só isso. De agradecer por encher de beleza que até dói de tão bonito que é. E eu que nem tava procurando resposta, só buscava alguma coisa para ler... Obrigada, Manoel, muito obrigada! Eu que já o amava desde a primeira vez que li a palavra ‘disilimina!’ em um livro seu, agora o amo ainda mais por disiliminar o pó do tempo e cavar achadouros na minha alma.

E agora, Manoel, enquanto escrevo me vejo correndo ali naquele pedaço de terra de fora da casa, cavando o pé da mangueira. Com sua licença, Manoel, sou a partir de hoje uma caçadora de achadouros de infância. Vou meio dementada com a enxada (que você me deu ontem à noite) às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.

Um grande abraço da menina Andréa.”

Foi só escrever a carta e Ela dormiu. Que nem passarinho. Que nem criança depois de brincar no quintal.

Ilha de São Luís do Maranhão, 24 de fevereiro de 2013