terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Ontem à noite, com Manoel





Andou pela casa e não ouviu ninguém. Ligou e Ele contou que havia saído para levar as crianças à casa de sua mãe, onde dormiriam. Ao voltar, trouxe alguns velhos álbuns de família, dos quais pretendia digitar a maioria das imagens, para salvá-las do tempo e da umidade.

Passaram algum tempo vendo as fotografias. Ela adorava vê-lo ali, menino, posando para as lentes, fosse exibindo a roupa nova ou feliz da vida na praia. Demorou-se vendo aquela em que participava do desfile de 7 de setembro em roupa de gala do colégio Marista. O cabelo claro, a pele bronzeada, as orelhas... A bola na mão, o orgulho de vestir a camisa do Botafogo, as sapatilhas de lona, de que já gostava ali na infância. O pai reunido com os filhos, o riso, a festa, os barulhos da casa, a folia no carro, onde todos cabiam e aquele universo era tão pequeno e imenso ao mesmo tempo.

Ela ficou pensando naquele mundo de cores em preto e branco, pensando também em suas fotografias de infância e perguntou a Ele: - Onde será que estão as crianças que nós fomos? Ficaram ali pensando até que outro assunto entrasse na conversa. Ele sentiu sono. Para ela, que até há pouco dormira profundamente – a ponto de não ter percebido o movimento da casa na saída de todos nem o barulho do carro chegando à garagem na volta dele – o sono não viria facilmente.

Deixou-o no quarto e pegou o jornal, que leu inteiro. Ao terminar, buscou companhia na estante de livros da sala. Aquele livro do Manoel de Barros, com as folhas soltas dentro de uma caixa, parecia acenar da prateleira. Por ter capa bonita e ser um dos mais amados da casa, fica de frente e não encaixado como os demais. Ao abri-lo, demorou-se na dedicatória do autor, de que já não se lembrava: “Aos queridos Pedro e Clarisse beijos carinhosos do vô Manoel de Barros”. A caligrafia trêmula não parecia a letra de um homem velho, mas as primeiras tentativas de um menino.



A cada historinha relida daquelas memórias inventadas de infância, mais beleza se espalhava pela sala, pela casa. Numa delas, sentiu como se flores nascessem de seus poros. A pele virando terra de um quintal de sonho. “Tudo o que não invento é falso”, ele avisa na primeira página. Ela lê e segue cada frase como uma Alice deslizando buraco abaixo.

Sozinha com as histórias de Manoel, Ela chorava e compreendia. Estava ali a resposta à pergunta que fizera mais cedo e ficara no ar. O acaso de ter aberto aquele livro a fazia se sentir especial, escolhida para viver aquela vida, ter os filhos que tinha e o homem que segurava a sua mão naquela estrada de ir e voltar que o Manoel, em uma das histórias, chama de seu amor. Àquela altura de já não acreditar em acaso, Ela se sentia íntima das histórias como se tivessem sido escritas para ela. Para eles. Para responder às suas perguntas. Ela sempre pensara em Manoel de Barros como um vô menino, um homem lindo e generoso como um grande quintal de árvores carregadinhas. Mas aquilo era muito maior. Era prova de amor. Voltou ao quarto ainda chorando, baixinho.

Na cama, no quase dormir, achou que precisava dizer isso tudo ao Manoel. Uma carta, um email, mesmo sem saber se chegaria às suas mãos. Por um segundo, chegou a pensar que naquela noite – será? – o Manoel de Barros teria morrido. Jogou fora o pensamento e foi escrevendo a carta no pensamento para de manhã colocá-la no papel. Procuraria um jeito de fazê-la chegar. Haveria de chegar...

“Meu caro Manoel”. Não. Melhor de outra forma. Caro é muito formal e afinal de contas já não eram completamente estranhos um para o outro. Tentou novamente.



“Meu querido Manoel de Barros,

Não tenho certeza de que minhas palavras chegarão até você, mas escrevo mesmo assim porque preciso falar depois do tanto que você me disse há pouco, quando fui encontrá-lo nas suas memórias inventadas de menino. Eu gosto muito de ver fotografias antigas e hoje meu marido trouxe para casa alguns álbuns com imagens de família. Fiquei, como sempre fico, encantada de ver as fotos dele menino. Ia dando vontade de entrar nelas para ver as histórias acontecendo. Deu vontade de chamá-lo para brincar, sei lá!

Mais tarde, levando comigo aquelas imagens, perguntei a ele para onde será que iam as crianças que nós fomos. Aquela pergunta ficou ali no meio de nós até se dissolver no ar. E não é que você, Manoel, que estava exibido na estante como o quadro mais bonito, me chamou para contar histórias até o sono chegar? E não é que você, Manoel, me arrastou por vários buracos de vários quintais e me respondeu? E aqui, só de lembrar do que senti indo com você nessa viagem, Manoel, só de lembrar eu choro de novo?

Não, não se preocupe, meu querido Manoel de Barros. Eu não chorei e não estou chorando de tristeza, não. Também não é de saudade. Eu choro é de agradecer, só isso. De agradecer por encher de beleza que até dói de tão bonito que é. E eu que nem tava procurando resposta, só buscava alguma coisa para ler... Obrigada, Manoel, muito obrigada! Eu que já o amava desde a primeira vez que li a palavra ‘disilimina!’ em um livro seu, agora o amo ainda mais por disiliminar o pó do tempo e cavar achadouros na minha alma.

E agora, Manoel, enquanto escrevo me vejo correndo ali naquele pedaço de terra de fora da casa, cavando o pé da mangueira. Com sua licença, Manoel, sou a partir de hoje uma caçadora de achadouros de infância. Vou meio dementada com a enxada (que você me deu ontem à noite) às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.

Um grande abraço da menina Andréa.”

Foi só escrever a carta e Ela dormiu. Que nem passarinho. Que nem criança depois de brincar no quintal.

Ilha de São Luís do Maranhão, 24 de fevereiro de 2013









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