quase todos os dias, de manhã cedinho, tenho um encontro com seu walter. nem sei se é assim que se escreve o nome dele, que descobri hoje, chamado pelos tantos conhecidos que o cumprimentam e só hoje reparei. somente hoje é que reparei com atenção cada detalhe daquela figura que já me parece um velho amigo. nunca nos falamos. apenas sei que vou encontrá-lo ali, no ponto onde aguardo o ônibus da empresa onde trabalho.
já havia reparado em sua figura e
na bike lanches que sempre encontro estacionada. no cuidado que teve para
cobrir os dois depósitos de isopor com plástico e da engenhoca que criou para
que as tampas não voem: alças que se prendem com ganchos à estrutura da bicicleta.
e essa não é a única engenhoca em sua bike. na frente vão os sucos – de bacuri,
maracujá, cajá, cupuaçu... – acondicionados em garrafas pet de refrigerante de
dois litros. na garupa ficam os salgados – pão-pizza, enrolado de salsicha,
coxinha, pastel árabe.... e no ar se espalha o cheiro da cantina do colégio
cada vez que ele abre para servir um novo freguês.
seu walter só pega o salgado com
uma das mãos dentro de um saco plástico. um porta-guardanapos é fixo perto do
guidão, de onde ele tira um para pegar cada salgado, colocar em um saquinho e
entregar ao cliente. o suco é servido em copo plástico. ao lado do quadro da
bicicleta um cesto de lixo de plástico é preso por um cordão de borracha.
no início da semana eu havia
reparado no chapéu. acho que antes era um boné e não tinha chamado a minha
atenção, a não ser pelo fato de usá-lo para proteger sua adiantada calvície.
ele sempre usa uma camisa de botão de manga curta e uma bermuda cheia de
bolsos. nos pés um tênis que imita marca famosa. sempre um sorriso no rosto e
um bom papo. mas um papo na medida.
mantém sempre à mão um caderninho
onde imagino que ele anota as vendas fiadas. sobre o caderno há sempre uma
revista de caça-palavras, para a qual dedica com uma concentração incrível
entre uma venda e outra. acho bonito vê-lo encostado, com um pé apoiado na
bicicleta, marcando as palavras que vai encontrando naquele emaranhado de
letras. essa era a minha ligação secreta com ele: do lado dele o caça-palavras
e do meu o eterno interesse pelas palavras cruzadas. por mais que eu não tenha
tempo sempre encontro um jeito de reencontrar pela casa ou dentro da bolsa um
caderno de palavras cruzadas para me fazer companhia.
mas hoje, de um instante para o
outro, me dei conta de que entre nós há uma outra e mais significativa ligação
secreta. seu walter pertence ao meu universo particular. sua bike, seu chapéu,
o plástico que envolve os depósitos dos lanches, o cestinho de lixo, a tinta da
caneta que não sai de sua mão direita... tudo azul como o céu que nos protege e
as mechas nos meus cabelos, desejo antigo que finalmente me permiti.
agora seu walter e seus azuis
viajam comigo e eu sou mais feliz porque ele existe. e eu quase posso ver, ao
final de seu expediente, ele seguindo com a camisa e o riso abertos, depósitos
vazios, dinheirinho no bolso, assoviando uma canção qualquer. fim de tarde, na
contramão do trânsito, seguindo leve, leve, pelas ruas, escapando por algum
atalho, até chegar em casa para mostrar à mulher a féria do dia. talvez tenha
netos e eles façam festa na hora em que chegar. talvez pare no mercadinho da
esquina para comprar um litro de leite... ou roube uma flor para entregar à sua
amada.
(ilustração: quadro de fernando
mendonça, mago das bicicletas feitas de sonho)